01/10/08

Matilde

Para Matilde, escovar o cabelo era mais do que um ritual de beleza, era um momento sagrado. Os seus pais, pessoas sérias e rectas não eram dados a afectos e desde cedo que este se tinha tornado uma das poucas formas de se sentir acarinhada. Para os outros, certamente que aquele era visto como um momento de higiene, mas para Matilde, o significado atribuído aquele momento atingia picos muito mais altos de relevância. Ela sempre havia gostado de distorcer um pouco as coisas, apesar de para si, essa palavra ser um pouco forte, ela gostava mais de pensar em “embelezar”. Via nesse ritual uma oportunidade excelente para captar a atenção dos pais. Recusando-se sempre a cortar o cabelo, os seus caracóis negros eram cada vez mais longos e mais difíceis de cuidar. Estratégia óptima para receber atenção – pensava ela. Cada vez que lhe escovavam o cabelo já não se sentia invisível, sentia-se acarinhada tal qual uma pequena princesa cujo destino do reino repousava apenas no brilho e beleza daqueles caracóis negros. Inicialmente, enveredara por este pequeno ritual por questões práticas (de facto há que admitir, talvez por preguiça, aborrecimento, mimo), mas há medida que a rigidez dos dentes da escova penetrava na sua cabeça tal qual uma lenta valsa, tal qual os dedos de uma mão que a acariciavam lentamente, aquela dormência ia-se apoderando de si, como um arrepio suave que lhe adormecia todos os sentidos e decidiu que esta era a melhor forma de roubar um pouco de atenção para si. De olhos semi-cerrados, por vezes desejava que aquele momento não acabasse nunca, pedinchando por mais alguns minutos daquele pequeno prazer e acreditando com cada vez mais convicção que simplesmente, pelo facto dos seus pais não recusarem nunca os seus pedidos que aquele era um modo de demonstrarem o amor por ela (mesmo que fosse sempre ela a reclamar pelo assíduo ritual), de modo voluntarioso e dedicado. Absorta naquela dormência, sentia-se bela e admirada, como se aqueles cabelos escuros, fossem de uma beleza tal que fosse impossível estar longe deles, como se não lhes tocar fosse absurdamente doloroso e insuportável. Imaginou então para si, que aquele pequeno ritual não passava de uma desculpa para tocar nos seus cabelos, para os admirar e acariciar, e cada vez mais convicta destas verdades fabricadas, decidiu para si mesma que tais factos eram inquestionavelmente verdadeiros.

1 comentário:

Estrelinha... disse...

Cheguei ao teu blog através do Canhoto e acabei por descobrir que um dos teus BLogs de Valor é do irmão da minha melhor amiga... Coincidências?

Entre tudo isto o que queria dizer é que adorei alguns dos teus textos... Este... o "This modern love breaks me"... Só isso*