30/05/08

O Gato

Ela pega no enorme búzio comido pelo tempo e encosta-o ao ouvido. Tão suave como o cheiro da maresia, é aquele som profundo que continua a vir do seu interior e a recorda de terras beijadas pelo mar e pela areia, terras de gente simples e de pele áspera, maltratada pelo sol e pelo sal. Sentada na margem do último andar de um prédio desconhecido, olha para baixo e contempla a azáfama das pessoas, andando freneticamente para a frente e para trás, tão pequenas como formigas. O barulho do vento fustiga as árvores e fá-la guardar o búzio na mala, com carinho e cuidado, como se de uma relíquia se tratasse, e encolher-se debaixo da enorme gola do sobretudo preto. Sente uma presença e vira-se ligeiramente, espreitando quem chega. Um gato. Um gato grande e bonito, de pelo lustroso e barriga pesada, demasiado bonito para ser um gato de rua. De nariz pintalgado de preto e amarelo, quase que se assemelha a uma pintura. Com movimentos suaves para não o afugentar, procura um pudim na mala para dar ao gato. “Será que ele come isto?” Pensa. Estende-lhe o pudim já aberto e delicia-se com a visão de ver o gato a devorar aquele pequeno petisco com afinco. Terminada a refeição, salta para o muro e senta-se ao seu lado, contemplando-a fixamente. As lágrimas escorrem-lhe pela face e gelam-lhe o peito ao caírem pelo pescoço. Pensa que bom seria se pudesse transformar-se num gato, num pequeno gato de rua, livre e feliz e que com isso, todos os seus problemas desapareceriam. Pensa que os gatos não choram, e que só por isso já valeria a pena. Olha fixamente para os olhos do gato, azuis e penetrantes, pensa que já devem ter visto mil histórias e lugares e, que se pudessem falar, certamente a embalariam ao som de relatos de passeios por vielas estreitas ou de pastos sem fim. Deixa de sentir o frio das lágrimas e sente o peito quente, olha para baixo e não vê o colar que tinha ao pescoço, mas sim uma pelagem branca e suave, como se a de um gato se tratasse. Olha para o lado e já não vê a sua companhia, apenas a embalagem de pudim vazia, e o seu colar, caído numa poça de chuva. Desce do muro e salta para o chão, sente os pés frios e molhados e ao olhar novamente apercebe-se que tinha patas de gato. Pega no colar com os dentes, e fá-lo deslizar pela sua cabeça, ficando pendente no seu pescoço. Olha novamente em seu redor, e procura algo ou alguém, sem saber bem o quê. Começa a chover, as pingas caem-lhe no pelo como se nada fosse, pois não sente frio. Dirige-se para a porta e começa a descer a enorme escadaria. Andar após andar, desce cada vez mais rápido, sem se sentir cansada e sem lhe doer a perna. Precisa de algo, mas continua sem saber o quê, apenas sente um cheiro doce a bebés e recorda a visão de uns olhos grandes e rasgados, escuros como a noite. Sem saber para onde vai, começa a caminhar sem parar, cada vez mais rápido e com destino a um sítio que não sabe o que é nem onde fica. Anda horas e horas, quase um dia inteiro, até que o aroma se torna cada vez mais intenso, e a sensação que está a chegar a algum lado é cada vez mais forte. Segue pelas ruas, virando e cruzando, cada vez mais certa do seu destino. Eis que vê uma porta familiar, dá algumas voltas, como se para ter a certeza que é ali que deve estar. Tenta falar mas não consegue, procura a campainha mas não chega lá em cima. Cada vez mais frustrada e ansiosa, procura uma maneira de entrar naquela casa. Um sufoco cada vez maior invade-a, um sufoco de querer chamar e gritar, e não sair nada. Volta a rodear aquela pequena casa de pedra até que avista uma janela aberta. Salta para o parapeito e vê uma pessoa, um rapaz, com os mesmos olhos com que havia sonhado e sente o mesmo cheiro que a tinha guiado até lá. Arranha o vidro freneticamente, tentando abrir a janela mas sem sucesso. Senta-se e espera que o rapaz a veja. Sossegado na sua cadeira, repara que está a desenhar algo que não consegue compreender o que é e deixa-se ficar muito quietinha a contemplar aquele cenário tão estranhamente familiar. Passados largos minutos, eis que o rapaz repara na presença de alguém e avista o gato. Nervosa e emocionada com a presença daquele estranho tão familiar, começa a miar e a arranhar ansiosamente o vidro, até que o rapaz abre a janela e a deixa entrar. Ela salta para o seu colo e começa a cheirá-lo, como se de um reconhecimento se tratasse, roça o nariz e os bigodes nas suas mãos invulgarmente bonitas para um homem, cheira a sua camisola, roça o pelo na sua pele. Estende as patas e tenta subir para o seu ombro, quando reconhece o cheiro que a tinha guiado até lá. O seu cabelo. Aquele cabelo curto e suave, tão doce como o de um bebé. Muito sossegada deixa-se ficar no seu colo enquanto ele lhe afaga o pelo com suavidade e carinho. Enrosca-se cada vez mais nele, como se nunca mais de lá quisesse sair. Olha para cima e vê-o sorrir para si. “Olá bichaninho”, diz ele suavemente. Quietinha, deixa-se adormecer, esperando que aquele momento não acabe nunca, e que a quentura daquele colo esteja sempre lá para ela. Tão quente e doce, tão quente e doce quanto a pessoa que o comporta, aquele rapaz dos olhos escuros, escuros como a noite.

13/05/08

This modern love breaks me







Saio do café em passo lento, apesar de estar calor levo o casaco posto com a t-shirt verde do trabalho a espreitar pela gola. A noite está quente e não se vê ninguém na rua, penso que horas serão. O meu impulso é olhar para o relógio mas apenas encontro o pulso despido, procuro o telemóvel e não o encontro, ficou fechado no café. Que se lixe penso, devem ser umas 3.30h da manha, quem é que me vai ligar? Ando cada vez mais devagar, ando invulgarmente cansada e abatida, tal qual adolescente descoordenada, ombro esquerdo sufocado pelo peso do portátil, ombro direito sufocado pela enorme mala cheia de material para o qual ultimamente nem tenho olhado. Olho a volta e aprecio o barulho da água na fonte do rato, à espera de ver as tão verídicas chinchilas (não é assim que se escreve eu sei) que a minha colega tão veemente afirma ver a saltitar por ali de vez em quando. Deverei dizer-lhe que talvez serão ratazanas ou atrever-me-ei a destruir a sua ilusão de que existem roedores mexicanos exóticos à solta na Covilhã? Passo pela universidade, não posso deixar de me lembrar que tenho aulas às 10h mas a tentação de ir apanhar um bocadinho de internet é maior e acabo por me sentar em frente à biblioteca. Ponho os auscultadores, apetece-me ouvir cocorosie. Deparo-me com uma mensagem que preferia não ter visto, “ estou na merda, perdi o rumo na vida, preciso de ti”. Não respondo. Não sei o que dizer. A preguiça consome-me, sei que devia trabalhar um pouco mas acabo a vaguear por sites de livros. Não consigo deixar de pensar nos problemas dos últimos tempos que se começam a amontoar tal qual as folhas das árvores no parque. Sim, são assim tantos. Uns abafam os outros, desaparecem brevemente mas logo vem o vento e põe-nos a descoberto de novo, realçando constantemente a sua existência. Penso se será possível viver sozinha, sem ninguém, sem conflitos, sem problemas. Assim não haveria problemas. Não consigo deixar de me rir um pouco ao lembrar-me do personagem de Lúcia no filme Lucia y el sexo, afirmando repetidamente “Voy a vivir sola” enquanto caminha freneticamente pela praia, para a frente e para trás, numa tentativa desesperada de afirmar a sua convicção. Vivir sola? Impossível, todos precisamos de pessoas, mas imaginem que bom seria viver sem mentiras, sem tolerar merdas de ninguém. Tenho quase 24 anos e sei que não sei muito da vida, pois se soubesse, não estaria constantemente a sofrer desilusões, pois poderia anteve-las antes de chegarem. À medida que as nossas prioridades se alteram, vamos dando mais importância a umas coisas do que a outras, e pouco a pouco, os duros picos da realidade vão-se instalando sem darmos por isso. Um dia acordamos e apercebemo-nos que nos tornámos frios e que aquela faceta infantil que antes preenchia uma grande parte da minha personalidade, está subtilmente a desaparecer. Inocência. Confiança. Pureza. Já não as tenho. Culpa minha? Duvido. Não compreendo porque existem pessoas que se dão ao trabalho de minar e boicotar a vida dos outros sem qualquer problema de consciência. Aliás, há quem já o faça naturalmente, como se fosse algo biológico, algo que não conseguem evitar. Recordo-me de no outro dia ter visto uma publicidade a uma reportagem na Tvi e esta frase ficou-me na cabeça: “se não és minha, não és de mais ninguém”. Assim como há homens que são capazes de tudo para ficarem com quem querem, também há mulheres capazes de passar por cima de tudo e de todos para ficarem com o que querem, ou com quem querem, mesmo que essa pessoa já não lhes pertença. Começa a chover e baixo de novo a terra. Hesito por instantes, vou ou fico? A chuva não é assim tão forte. Pensado melhor, acho que vou, o computador não é impermeável, nem a minha franja (pensamento de gaja). Apresso-me rua acima e quase morro de susto quando um carro cheio de bimbos passa por mim a alta velocidade, buzindando e grunhindo algo obsceno que preferi não me dar ao trabalho de decifrar. Chego a casa e mal entro no prédio, o cheiro a pão e bolos intoxica-me de imediato. Privilégios de viver por cima da padaria. Se bem que o aquecimento de borla e o cheiro aconhegante ao forno da avó apenas me vale quando é inverno, porque nos últimos tempos, apenas o associo a acordar suada a meio da noite e a pesadelos com cheiro a canela. Podia jurar que no outro dia acordei a meio da noite, e ao olhar os meus pés despidos, vi as tiras do palmier de chocolate, demolhadas em chocolate nas pontinhas, onde as unhas deveriam estar. Devo estar a ficar choné. Abro a janela do quarto. La fora a lua está bem alta, bem cheia e cor de laranja. Consigo vê-la da cama, isto sempre me reconfortou. No computador toca blocparty, ao tempo que não ouvia isto, mesmo assim lembro-me sempre de alguém que não vejo há muito tempo. Olho para a parede cheia de desenhos e colagens. Já me apetece desenhar de novo. Pego na colecção na qual é suposto inspirar-me para fazer outra colecção e folheio-a demoradamente. Paneleiro, bicha, aberração, estranho. Digam o que disserem, para mim John Galliano é sinónimo de Génio. Escolhi a sua colecção para a Christian Dior, (do Outono-Inverno de 2001/2002, caso queiram cuscar) para reinterpretar criativamente, fazer um painel abstracto sobre a mesma, e com base nisso, criar a minha própria colecção, inspirada nessa mesma, mas ao mesmo tempo diferente. Parece fácil? Nem um pouco. Mas balanço final, saí-me melhor do que esperava. Sinto que aprendi e evoluí muito, e apenas posso sentir pena por ter passado tantos anos da minha vida a fazer tudo menos isto. É este momento que conta. E não as mentiras e mexericos, não os problemas de merda e pseudo-conflitos. É este momento, agora. Olhar para o meu trabalho e sentir que não mudava uma linha, sentir que tudo aquilo sou eu e que não poderia fazê-lo de outra forma. Sentir-me feliz pelos elogios, em vez de me sentir triste pelas facadas dos outros. Que se fodam. Uma amiga há tempos disse-me, “as pessoas só têm a importância que lhes damos” (frase de gaja, eu sei, mas tão verdadeira que é impossível de não pensar nela), pois só importa quem eu quero. O resto que vá com os porcos. Levanto-me e começo a procura do meu frasquinho das bolas de sabão, ao tempo que não o vejo. Encontro-o dentro de uma caixa de sapatos. Deito-me na cama, vou fazendo bolas de sabão com cheirinho a fairy limão, o sono já pesa e o corpo também, olho para as bolas a pairar no ar enquanto se aproximam da lua. Adormeço. Nessa noite não sonhei com bolos de canela nem com palmiers de chocolate. Sonhei que era muito pequenina, leve que nem um smartie (ou um conguito, porque não?). Flutuava numa bola enorme com cheirinho a fairy, até a lua, num passeio demorado e agradável. Longe de todos, ao som de cocorosie. Sola, solamente sola.

06/05/08

Escapadela (com sabor agridoce)





"I'll always be by your side, Even when you're down and out, I'll always be by your side, Even when you're down and out, I'd wear your black eyes, Bake you apple pies, I don't ask why... "