14/12/08

Lúcia

Completamente atónita e sem saber o que dizer, Lúcia morde o lábio como se estivesse a comer as suas próprias palavras que se recusavam a sair, o seu coração batia desenfreadamente como se a qualquer momento se fosse desfazer até ficar em pó. Ficara ali suspensa no ar, irrepreensivelmente calada desde que o médico fora incapaz de diagnosticar o porquê da sua estranha maleita. Sentada na marquesa do consultório do Dr. Klein, o médico anão, esperava ansiosamente pelo regresso do mesmo. Após algum tempo à espera, Lúcia ouve vozes que se aproximam e o seu coração bate tão rápido que se havia convertido num zumbido cujas batidas eram impossíveis de se distinguir. Sentia-se como um daqueles pequenos esquilos voadores a quem a visão nocturna lhe começava a falhar e encontrava-se prestes a esborrachar-se contra a árvore mais próxima. A porta abre-se e o médico abre caminho, seguido por mais dois colegas que a ela lhe pareciam todos exactamente iguais. Calvos, de óculos fundos, relógios caros, batas brancas e sapatos bem engraxados.

- Bem, de facto é um caso muito peculiar. Afirma um dos médicos apertando o queixo com a ponta dos dedos, como se estivesse a tentar ordenhar do mesmo a explicação para o que via.

- Deveras peculiar, nunca vi nada assim em vinte anos de carreira! Penso que a solução é extrair completamente o mal pela raiz. Diz o outro médico, coçando a rala cabeleira que mal cobria a sua cabeça.

- Continuo a achar que devíamos esperar, como é que sabemos se aquilo é maligno? Afirma o outro médico, de braços atrás das costas e de sobrancelha direita ligeiramente franzida.

- Só pode ser, olhe bem para a pobre da rapariga. Como se sente? Parece desanimada. Diz o Dr. Klein

Lúcia tenta responder mas apenas emite uma espécie de grunhido, algo que pouco ou nada se assemelhavam a palavras. Olha para as faces expectantes dos médicos, ansiosos e de olhos arregalados por mais explicações acerca do surgimento daquele estranho acontecimento. Num esforço quase sobre humano, tenta explicar de novo a sua história.

- Bem…eu não posso dizer que sinto dor propriamente dita, mas não é nada agradável ser mordiscada a toda a hora. Ainda há pouco no metro a caminho de cá, tive que mudar várias vezes de carruagem pois havia sempre alguém a tentar comer-me, até tentei fazer uma trança no cabelo, mas de pouco serviu, até o elástico comeram…O pior são os cães e os gatos que me perseguem para todo o lado e me olham como um petisco acabado de sair do forno. Sabe Dr. Klein, eu até não me importava de ficar careca, completamente pelada como um daqueles gatos chineses que as senhoras finas levam ao colo, mas continua a crescer por mais que corte!
O Dr. Klein tira agilmente a sua lupa do bolso e observa cuidadosamente a cabeça da rapariga.

- De facto minha menina, não sei o que lhe diga, eu e os meus colegas vamos reunir-nos e analisar de novo os seus exames, volte cá exactamente daqui a uma semana. Entretanto aconselho-a a andar de chapéu, tem que ver que não é muito comum uma rapariga com cabelo de esparguete, não serão poucas as pessoas a quererem provar um bocadinho de si, digamos que neste momento é como se fosse um petisco ambulante!
Lúcia, salta agilmente da marquesa, veste o casaco e baixa-se consideravelmente para apertar a mão ao médico.

- Até para a semana então. Despede-se Lúcia

Atravessa o consultório e de sorriso desanimado nos lábios dirige-se para a porta, sempre debaixo dos olhares curiosos e observadores dos médicos.

- Devo confessar que fiquei com uma certa fome. Confessa o Dr. Klein

- Vamos almoçar? Penso que já está na hora. Diz um dos médicos

- Vamos ao Italiano.

continua

05/11/08

Em dias como aquele, o cheiro das laranjas era sempre mais intenso. O bafo da humidade arrastava o cheiro do laranjal pela janela do quarto, e aquela atmosfera quente e chuvosa começava a incomodá-la. Matilde sempre gostara da chuva mas em dias como aquele, aquelas gotas pesadas e fortes apenas contribuíam para deixa-la ainda mais abatida. Decide por um banho de água quente a correr, despe-se lenta mas agilmente e mergulhando a ponta dos dedinhos do pé na água, confirma que a água está exactamente como gosta. Bem quente. Tenta absorver-se de todos os seus pensamentos mas é-lhe cada vez mais difícil manter-se calma. Não consegue deixar de pensar como teria sido se tivesse continuado a andar em frente naquela manhã. Se tivesse ignorado aquela pessoa como tinha ignorado tantas outras anteriormente. Onde estaria neste exacto momento? Seria a mesma pessoa? Por momentos arrependeu-se de tudo e desejou fazer o tempo voltar atrás, desejou-o com tanta força que por momentos, por breves instantes, acreditou que pudesse ser real, até que a inevitável força do sentimento que a abalava lhe mostrou que nada iria ser igual de agora em diante. Gostava daquela pessoa. Sabia que tinha que seguir mas não sabia como. Desejou desaparecer, desejou-o com tanta força até se fundir com o vapor da água, e o que eram antes os seus cabelos, a sua pele, a sua alma, se evaporaram na finura do ar, flutuando por aqui e por ali, bamboleantes tal qual borboletas. Fundiu-se com a chuva que caía grossa lá fora, fundiu-se com o cheiro das laranjas, com o cheiro da terra molhada, com o cheiro dos gatos vadios escondidos debaixo dos carros, fundiu-se com a terra, fundiu-se com o mar, lá bem longe. E ainda hoje dizem que quando chove, as flores ganham uma cor e um brilho diferentes, que o mar produz uma melodia mais triste, que os gatos miam outros lamentos e que os laranjais, esses pátios de aromas doces e melancólicos, nunca haviam produzido laranjas tão doces.

11/10/08

Raios partam que não consigo por parágrafos na merda do blog!!!

07/10/08

Cocorosie - Tekno Love Song




I fell in love with a bad bad man
Every since i met him
I've been sad sad sad
I'm a jailbird to your music
A criminal in your prayer
I watch you when you sleep
Even when you're not there

Rainbows wept color all over the streets
When you went away maybe one day we'll meet

Lipstick i'd wear for one million years
Just to stop your eyes from falling down to you

I fell in love with a bad bad man
Every since i met him
I've been sad sad sad
I'm a jailbird to your music
A criminal in your prayer
I watch you when you sleep
Even when you're not there

Rainbows wept color all over the streets
When you went away maybe one day we'll meet
One day we'll meet
One day we'll meet
One day
We'll meet

01/10/08

Matilde

Para Matilde, escovar o cabelo era mais do que um ritual de beleza, era um momento sagrado. Os seus pais, pessoas sérias e rectas não eram dados a afectos e desde cedo que este se tinha tornado uma das poucas formas de se sentir acarinhada. Para os outros, certamente que aquele era visto como um momento de higiene, mas para Matilde, o significado atribuído aquele momento atingia picos muito mais altos de relevância. Ela sempre havia gostado de distorcer um pouco as coisas, apesar de para si, essa palavra ser um pouco forte, ela gostava mais de pensar em “embelezar”. Via nesse ritual uma oportunidade excelente para captar a atenção dos pais. Recusando-se sempre a cortar o cabelo, os seus caracóis negros eram cada vez mais longos e mais difíceis de cuidar. Estratégia óptima para receber atenção – pensava ela. Cada vez que lhe escovavam o cabelo já não se sentia invisível, sentia-se acarinhada tal qual uma pequena princesa cujo destino do reino repousava apenas no brilho e beleza daqueles caracóis negros. Inicialmente, enveredara por este pequeno ritual por questões práticas (de facto há que admitir, talvez por preguiça, aborrecimento, mimo), mas há medida que a rigidez dos dentes da escova penetrava na sua cabeça tal qual uma lenta valsa, tal qual os dedos de uma mão que a acariciavam lentamente, aquela dormência ia-se apoderando de si, como um arrepio suave que lhe adormecia todos os sentidos e decidiu que esta era a melhor forma de roubar um pouco de atenção para si. De olhos semi-cerrados, por vezes desejava que aquele momento não acabasse nunca, pedinchando por mais alguns minutos daquele pequeno prazer e acreditando com cada vez mais convicção que simplesmente, pelo facto dos seus pais não recusarem nunca os seus pedidos que aquele era um modo de demonstrarem o amor por ela (mesmo que fosse sempre ela a reclamar pelo assíduo ritual), de modo voluntarioso e dedicado. Absorta naquela dormência, sentia-se bela e admirada, como se aqueles cabelos escuros, fossem de uma beleza tal que fosse impossível estar longe deles, como se não lhes tocar fosse absurdamente doloroso e insuportável. Imaginou então para si, que aquele pequeno ritual não passava de uma desculpa para tocar nos seus cabelos, para os admirar e acariciar, e cada vez mais convicta destas verdades fabricadas, decidiu para si mesma que tais factos eram inquestionavelmente verdadeiros.

18/09/08

The joke's on me

Recentemente cheguei a conclusão que casa de universitário é não só um paraíso de farra, liberdade e descontracção, mas também um paraíso de traças. Casas velhas são lixadas. Recordei quando eu tão cruelmente troçei de uma pobre rapariga que libertava odores a naftalina. Há dias mordi a minha grande lingua quando, vendo as pobres criaturas emaranharem por todo o lado, e por mais que limpasse, esfregasse, desinfectasse e espalhasse saquetas perfumadas por todo o lado (p.s. o ajax para os rastejantes não funciona, gatunos!), vi-me obrigada a tomar uma solução mais radical e a recorrer às tão famigeradas bolas de naftalina. Espalhei as ditas bolinhas pela casa, tão brancas e reluzentes tal qual rebuçadinhos bola de neve, e pensei, raios partam se não vou matar estas putas todas. De noite chego a casa e apercebo-me que o cheiro não só se tinha entranhado na minha roupa, como no corredor do prédio e afins. Segundo a minha senhoria apenas uma ou duas chegavam, se calhar não devia ter posto a embalagem toda, não?
E agora digo, sim, é possível haver pessoas com menos de 60 anos que cheiram a bolas de naftalina, e eu sou uma delas. Nessa noite fui sair e o perfume era outro, Bolas de Naftalina Continente.
Irónico não?E agora digo: ha ha the joke's on me.

04/06/08

Dúvidas existenciais

No outro dia ao passar pelas bombas de gasolina da Agip perto de minha casa, uma questão assolou-me fortemente, algo que já me tinha perturbado diversas vezes e que não me tem saído da cabeça. Certamente todos podemos concordar que vivemos num mundo louco, frenético em que tudo anda muito rápido, talvez por vezes rápido demais. A nossa sociedade encontra-se em constante evolução, os costumes já não são o que eram, e os preços….bem os preços nem comento. Um grupo de pessoas passou e aquele cheiro bateu-me forte, tão forte como a questão que não me saiu da cabeça o dia todo. Gasolina? Não, naftalina. E a questão perdura, forte e incisiva, tão importante como tantos outros assuntos que me perturbam diariamente.

Porque é que ainda há pessoas com menos de 65 anos que cheiram a bolas de naftalina?

30/05/08

O Gato

Ela pega no enorme búzio comido pelo tempo e encosta-o ao ouvido. Tão suave como o cheiro da maresia, é aquele som profundo que continua a vir do seu interior e a recorda de terras beijadas pelo mar e pela areia, terras de gente simples e de pele áspera, maltratada pelo sol e pelo sal. Sentada na margem do último andar de um prédio desconhecido, olha para baixo e contempla a azáfama das pessoas, andando freneticamente para a frente e para trás, tão pequenas como formigas. O barulho do vento fustiga as árvores e fá-la guardar o búzio na mala, com carinho e cuidado, como se de uma relíquia se tratasse, e encolher-se debaixo da enorme gola do sobretudo preto. Sente uma presença e vira-se ligeiramente, espreitando quem chega. Um gato. Um gato grande e bonito, de pelo lustroso e barriga pesada, demasiado bonito para ser um gato de rua. De nariz pintalgado de preto e amarelo, quase que se assemelha a uma pintura. Com movimentos suaves para não o afugentar, procura um pudim na mala para dar ao gato. “Será que ele come isto?” Pensa. Estende-lhe o pudim já aberto e delicia-se com a visão de ver o gato a devorar aquele pequeno petisco com afinco. Terminada a refeição, salta para o muro e senta-se ao seu lado, contemplando-a fixamente. As lágrimas escorrem-lhe pela face e gelam-lhe o peito ao caírem pelo pescoço. Pensa que bom seria se pudesse transformar-se num gato, num pequeno gato de rua, livre e feliz e que com isso, todos os seus problemas desapareceriam. Pensa que os gatos não choram, e que só por isso já valeria a pena. Olha fixamente para os olhos do gato, azuis e penetrantes, pensa que já devem ter visto mil histórias e lugares e, que se pudessem falar, certamente a embalariam ao som de relatos de passeios por vielas estreitas ou de pastos sem fim. Deixa de sentir o frio das lágrimas e sente o peito quente, olha para baixo e não vê o colar que tinha ao pescoço, mas sim uma pelagem branca e suave, como se a de um gato se tratasse. Olha para o lado e já não vê a sua companhia, apenas a embalagem de pudim vazia, e o seu colar, caído numa poça de chuva. Desce do muro e salta para o chão, sente os pés frios e molhados e ao olhar novamente apercebe-se que tinha patas de gato. Pega no colar com os dentes, e fá-lo deslizar pela sua cabeça, ficando pendente no seu pescoço. Olha novamente em seu redor, e procura algo ou alguém, sem saber bem o quê. Começa a chover, as pingas caem-lhe no pelo como se nada fosse, pois não sente frio. Dirige-se para a porta e começa a descer a enorme escadaria. Andar após andar, desce cada vez mais rápido, sem se sentir cansada e sem lhe doer a perna. Precisa de algo, mas continua sem saber o quê, apenas sente um cheiro doce a bebés e recorda a visão de uns olhos grandes e rasgados, escuros como a noite. Sem saber para onde vai, começa a caminhar sem parar, cada vez mais rápido e com destino a um sítio que não sabe o que é nem onde fica. Anda horas e horas, quase um dia inteiro, até que o aroma se torna cada vez mais intenso, e a sensação que está a chegar a algum lado é cada vez mais forte. Segue pelas ruas, virando e cruzando, cada vez mais certa do seu destino. Eis que vê uma porta familiar, dá algumas voltas, como se para ter a certeza que é ali que deve estar. Tenta falar mas não consegue, procura a campainha mas não chega lá em cima. Cada vez mais frustrada e ansiosa, procura uma maneira de entrar naquela casa. Um sufoco cada vez maior invade-a, um sufoco de querer chamar e gritar, e não sair nada. Volta a rodear aquela pequena casa de pedra até que avista uma janela aberta. Salta para o parapeito e vê uma pessoa, um rapaz, com os mesmos olhos com que havia sonhado e sente o mesmo cheiro que a tinha guiado até lá. Arranha o vidro freneticamente, tentando abrir a janela mas sem sucesso. Senta-se e espera que o rapaz a veja. Sossegado na sua cadeira, repara que está a desenhar algo que não consegue compreender o que é e deixa-se ficar muito quietinha a contemplar aquele cenário tão estranhamente familiar. Passados largos minutos, eis que o rapaz repara na presença de alguém e avista o gato. Nervosa e emocionada com a presença daquele estranho tão familiar, começa a miar e a arranhar ansiosamente o vidro, até que o rapaz abre a janela e a deixa entrar. Ela salta para o seu colo e começa a cheirá-lo, como se de um reconhecimento se tratasse, roça o nariz e os bigodes nas suas mãos invulgarmente bonitas para um homem, cheira a sua camisola, roça o pelo na sua pele. Estende as patas e tenta subir para o seu ombro, quando reconhece o cheiro que a tinha guiado até lá. O seu cabelo. Aquele cabelo curto e suave, tão doce como o de um bebé. Muito sossegada deixa-se ficar no seu colo enquanto ele lhe afaga o pelo com suavidade e carinho. Enrosca-se cada vez mais nele, como se nunca mais de lá quisesse sair. Olha para cima e vê-o sorrir para si. “Olá bichaninho”, diz ele suavemente. Quietinha, deixa-se adormecer, esperando que aquele momento não acabe nunca, e que a quentura daquele colo esteja sempre lá para ela. Tão quente e doce, tão quente e doce quanto a pessoa que o comporta, aquele rapaz dos olhos escuros, escuros como a noite.

13/05/08

This modern love breaks me







Saio do café em passo lento, apesar de estar calor levo o casaco posto com a t-shirt verde do trabalho a espreitar pela gola. A noite está quente e não se vê ninguém na rua, penso que horas serão. O meu impulso é olhar para o relógio mas apenas encontro o pulso despido, procuro o telemóvel e não o encontro, ficou fechado no café. Que se lixe penso, devem ser umas 3.30h da manha, quem é que me vai ligar? Ando cada vez mais devagar, ando invulgarmente cansada e abatida, tal qual adolescente descoordenada, ombro esquerdo sufocado pelo peso do portátil, ombro direito sufocado pela enorme mala cheia de material para o qual ultimamente nem tenho olhado. Olho a volta e aprecio o barulho da água na fonte do rato, à espera de ver as tão verídicas chinchilas (não é assim que se escreve eu sei) que a minha colega tão veemente afirma ver a saltitar por ali de vez em quando. Deverei dizer-lhe que talvez serão ratazanas ou atrever-me-ei a destruir a sua ilusão de que existem roedores mexicanos exóticos à solta na Covilhã? Passo pela universidade, não posso deixar de me lembrar que tenho aulas às 10h mas a tentação de ir apanhar um bocadinho de internet é maior e acabo por me sentar em frente à biblioteca. Ponho os auscultadores, apetece-me ouvir cocorosie. Deparo-me com uma mensagem que preferia não ter visto, “ estou na merda, perdi o rumo na vida, preciso de ti”. Não respondo. Não sei o que dizer. A preguiça consome-me, sei que devia trabalhar um pouco mas acabo a vaguear por sites de livros. Não consigo deixar de pensar nos problemas dos últimos tempos que se começam a amontoar tal qual as folhas das árvores no parque. Sim, são assim tantos. Uns abafam os outros, desaparecem brevemente mas logo vem o vento e põe-nos a descoberto de novo, realçando constantemente a sua existência. Penso se será possível viver sozinha, sem ninguém, sem conflitos, sem problemas. Assim não haveria problemas. Não consigo deixar de me rir um pouco ao lembrar-me do personagem de Lúcia no filme Lucia y el sexo, afirmando repetidamente “Voy a vivir sola” enquanto caminha freneticamente pela praia, para a frente e para trás, numa tentativa desesperada de afirmar a sua convicção. Vivir sola? Impossível, todos precisamos de pessoas, mas imaginem que bom seria viver sem mentiras, sem tolerar merdas de ninguém. Tenho quase 24 anos e sei que não sei muito da vida, pois se soubesse, não estaria constantemente a sofrer desilusões, pois poderia anteve-las antes de chegarem. À medida que as nossas prioridades se alteram, vamos dando mais importância a umas coisas do que a outras, e pouco a pouco, os duros picos da realidade vão-se instalando sem darmos por isso. Um dia acordamos e apercebemo-nos que nos tornámos frios e que aquela faceta infantil que antes preenchia uma grande parte da minha personalidade, está subtilmente a desaparecer. Inocência. Confiança. Pureza. Já não as tenho. Culpa minha? Duvido. Não compreendo porque existem pessoas que se dão ao trabalho de minar e boicotar a vida dos outros sem qualquer problema de consciência. Aliás, há quem já o faça naturalmente, como se fosse algo biológico, algo que não conseguem evitar. Recordo-me de no outro dia ter visto uma publicidade a uma reportagem na Tvi e esta frase ficou-me na cabeça: “se não és minha, não és de mais ninguém”. Assim como há homens que são capazes de tudo para ficarem com quem querem, também há mulheres capazes de passar por cima de tudo e de todos para ficarem com o que querem, ou com quem querem, mesmo que essa pessoa já não lhes pertença. Começa a chover e baixo de novo a terra. Hesito por instantes, vou ou fico? A chuva não é assim tão forte. Pensado melhor, acho que vou, o computador não é impermeável, nem a minha franja (pensamento de gaja). Apresso-me rua acima e quase morro de susto quando um carro cheio de bimbos passa por mim a alta velocidade, buzindando e grunhindo algo obsceno que preferi não me dar ao trabalho de decifrar. Chego a casa e mal entro no prédio, o cheiro a pão e bolos intoxica-me de imediato. Privilégios de viver por cima da padaria. Se bem que o aquecimento de borla e o cheiro aconhegante ao forno da avó apenas me vale quando é inverno, porque nos últimos tempos, apenas o associo a acordar suada a meio da noite e a pesadelos com cheiro a canela. Podia jurar que no outro dia acordei a meio da noite, e ao olhar os meus pés despidos, vi as tiras do palmier de chocolate, demolhadas em chocolate nas pontinhas, onde as unhas deveriam estar. Devo estar a ficar choné. Abro a janela do quarto. La fora a lua está bem alta, bem cheia e cor de laranja. Consigo vê-la da cama, isto sempre me reconfortou. No computador toca blocparty, ao tempo que não ouvia isto, mesmo assim lembro-me sempre de alguém que não vejo há muito tempo. Olho para a parede cheia de desenhos e colagens. Já me apetece desenhar de novo. Pego na colecção na qual é suposto inspirar-me para fazer outra colecção e folheio-a demoradamente. Paneleiro, bicha, aberração, estranho. Digam o que disserem, para mim John Galliano é sinónimo de Génio. Escolhi a sua colecção para a Christian Dior, (do Outono-Inverno de 2001/2002, caso queiram cuscar) para reinterpretar criativamente, fazer um painel abstracto sobre a mesma, e com base nisso, criar a minha própria colecção, inspirada nessa mesma, mas ao mesmo tempo diferente. Parece fácil? Nem um pouco. Mas balanço final, saí-me melhor do que esperava. Sinto que aprendi e evoluí muito, e apenas posso sentir pena por ter passado tantos anos da minha vida a fazer tudo menos isto. É este momento que conta. E não as mentiras e mexericos, não os problemas de merda e pseudo-conflitos. É este momento, agora. Olhar para o meu trabalho e sentir que não mudava uma linha, sentir que tudo aquilo sou eu e que não poderia fazê-lo de outra forma. Sentir-me feliz pelos elogios, em vez de me sentir triste pelas facadas dos outros. Que se fodam. Uma amiga há tempos disse-me, “as pessoas só têm a importância que lhes damos” (frase de gaja, eu sei, mas tão verdadeira que é impossível de não pensar nela), pois só importa quem eu quero. O resto que vá com os porcos. Levanto-me e começo a procura do meu frasquinho das bolas de sabão, ao tempo que não o vejo. Encontro-o dentro de uma caixa de sapatos. Deito-me na cama, vou fazendo bolas de sabão com cheirinho a fairy limão, o sono já pesa e o corpo também, olho para as bolas a pairar no ar enquanto se aproximam da lua. Adormeço. Nessa noite não sonhei com bolos de canela nem com palmiers de chocolate. Sonhei que era muito pequenina, leve que nem um smartie (ou um conguito, porque não?). Flutuava numa bola enorme com cheirinho a fairy, até a lua, num passeio demorado e agradável. Longe de todos, ao som de cocorosie. Sola, solamente sola.

06/05/08

Escapadela (com sabor agridoce)





"I'll always be by your side, Even when you're down and out, I'll always be by your side, Even when you're down and out, I'd wear your black eyes, Bake you apple pies, I don't ask why... "