Ela pega no enorme búzio comido pelo tempo e encosta-o ao ouvido. Tão suave como o cheiro da maresia, é aquele som profundo que continua a vir do seu interior e a recorda de terras beijadas pelo mar e pela areia, terras de gente simples e de pele áspera, maltratada pelo sol e pelo sal. Sentada na margem do último andar de um prédio desconhecido, olha para baixo e contempla a azáfama das pessoas, andando freneticamente para a frente e para trás, tão pequenas como formigas. O barulho do vento fustiga as árvores e fá-la guardar o búzio na mala, com carinho e cuidado, como se de uma relíquia se tratasse, e encolher-se debaixo da enorme gola do sobretudo preto. Sente uma presença e vira-se ligeiramente, espreitando quem chega. Um gato. Um gato grande e bonito, de pelo lustroso e barriga pesada, demasiado bonito para ser um gato de rua. De nariz pintalgado de preto e amarelo, quase que se assemelha a uma pintura. Com movimentos suaves para não o afugentar, procura um pudim na mala para dar ao gato. “Será que ele come isto?” Pensa. Estende-lhe o pudim já aberto e delicia-se com a visão de ver o gato a devorar aquele pequeno petisco com afinco. Terminada a refeição, salta para o muro e senta-se ao seu lado, contemplando-a fixamente. As lágrimas escorrem-lhe pela face e gelam-lhe o peito ao caírem pelo pescoço. Pensa que bom seria se pudesse transformar-se num gato, num pequeno gato de rua, livre e feliz e que com isso, todos os seus problemas desapareceriam. Pensa que os gatos não choram, e que só por isso já valeria a pena. Olha fixamente para os olhos do gato, azuis e penetrantes, pensa que já devem ter visto mil histórias e lugares e, que se pudessem falar, certamente a embalariam ao som de relatos de passeios por vielas estreitas ou de pastos sem fim. Deixa de sentir o frio das lágrimas e sente o peito quente, olha para baixo e não vê o colar que tinha ao pescoço, mas sim uma pelagem branca e suave, como se a de um gato se tratasse. Olha para o lado e já não vê a sua companhia, apenas a embalagem de pudim vazia, e o seu colar, caído numa poça de chuva. Desce do muro e salta para o chão, sente os pés frios e molhados e ao olhar novamente apercebe-se que tinha patas de gato. Pega no colar com os dentes, e fá-lo deslizar pela sua cabeça, ficando pendente no seu pescoço. Olha novamente em seu redor, e procura algo ou alguém, sem saber bem o quê. Começa a chover, as pingas caem-lhe no pelo como se nada fosse, pois não sente frio. Dirige-se para a porta e começa a descer a enorme escadaria. Andar após andar, desce cada vez mais rápido, sem se sentir cansada e sem lhe doer a perna. Precisa de algo, mas continua sem saber o quê, apenas sente um cheiro doce a bebés e recorda a visão de uns olhos grandes e rasgados, escuros como a noite. Sem saber para onde vai, começa a caminhar sem parar, cada vez mais rápido e com destino a um sítio que não sabe o que é nem onde fica. Anda horas e horas, quase um dia inteiro, até que o aroma se torna cada vez mais intenso, e a sensação que está a chegar a algum lado é cada vez mais forte. Segue pelas ruas, virando e cruzando, cada vez mais certa do seu destino. Eis que vê uma porta familiar, dá algumas voltas, como se para ter a certeza que é ali que deve estar. Tenta falar mas não consegue, procura a campainha mas não chega lá em cima. Cada vez mais frustrada e ansiosa, procura uma maneira de entrar naquela casa. Um sufoco cada vez maior invade-a, um sufoco de querer chamar e gritar, e não sair nada. Volta a rodear aquela pequena casa de pedra até que avista uma janela aberta. Salta para o parapeito e vê uma pessoa, um rapaz, com os mesmos olhos com que havia sonhado e sente o mesmo cheiro que a tinha guiado até lá. Arranha o vidro freneticamente, tentando abrir a janela mas sem sucesso. Senta-se e espera que o rapaz a veja. Sossegado na sua cadeira, repara que está a desenhar algo que não consegue compreender o que é e deixa-se ficar muito quietinha a contemplar aquele cenário tão estranhamente familiar. Passados largos minutos, eis que o rapaz repara na presença de alguém e avista o gato. Nervosa e emocionada com a presença daquele estranho tão familiar, começa a miar e a arranhar ansiosamente o vidro, até que o rapaz abre a janela e a deixa entrar. Ela salta para o seu colo e começa a cheirá-lo, como se de um reconhecimento se tratasse, roça o nariz e os bigodes nas suas mãos invulgarmente bonitas para um homem, cheira a sua camisola, roça o pelo na sua pele. Estende as patas e tenta subir para o seu ombro, quando reconhece o cheiro que a tinha guiado até lá. O seu cabelo. Aquele cabelo curto e suave, tão doce como o de um bebé. Muito sossegada deixa-se ficar no seu colo enquanto ele lhe afaga o pelo com suavidade e carinho. Enrosca-se cada vez mais nele, como se nunca mais de lá quisesse sair. Olha para cima e vê-o sorrir para si. “Olá bichaninho”, diz ele suavemente. Quietinha, deixa-se adormecer, esperando que aquele momento não acabe nunca, e que a quentura daquele colo esteja sempre lá para ela. Tão quente e doce, tão quente e doce quanto a pessoa que o comporta, aquele rapaz dos olhos escuros, escuros como a noite.
30/05/08
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2 comentários:
E que grande sorte tem esse rapaz...
Tão lindo miuda....
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